A ATM - Associação de Investidores e Analistas Técnicos do Mercado de Capitais apresentou uma queixa electrónica ao Senhor Provedor de Justiça em que é visada a Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) por recusar o direito de alienação potestativa aos titulares das acções remanescentes da Espírito Santo Saúde, SGPS, S.A. (ESS) que adquiriram as mesmas depois da Oferta Pública de Concorrente de Aquisição lançada pela Fidelidade - Companhia de Seguros, S.A. (Fidelidade).
À queixa foi atribuído o n.º 2014N07980.
A ATM sustenta, ipsis verbis, o seguinte:
"Em 26 de Setembro de 2014, a Fidelidade - Companhia de Seguros, S.A. (doravante apenas Oferente) anunciou o lançamento de uma Oferta Pública Concorrente Geral e Voluntária de Aquisição (OPA) de acções representativas do capital social da Espírito Santo Saúde, S.G.P.S., S.A. (doravante apenas ESS) cujo resultado foi publicado em 15 de Outubro de 2014*.
Na sequência dessa oferta a Fidelidade adquiriu 91.782.932 acções, representativas de 96.065% do capital social e 96.12157% dos respectivos direitos de voto. O grau de aceitação da oferta (após de dedução de 54.385 acções próprias) foi de 96.12151%.
Ou seja, a Oferente conseguiu, na sequência do lançamento da referida OPA, ultrapassar 90 % dos direitos de voto correspondentes ao capital social até ao apuramento dos resultados da oferta e ultrapassar os 90 % dos direitos de voto abrangidos pela oferta.
Em resultado, a Oferente pode, nos três meses subsequentes, adquirir as acções remanescentes mediante contrapartida justa, em dinheiro, calculada nos termos do artigo 188.º do CodVM (Cfr. artigo 194.º n. º1 do CodVM).
O artigo 15.º da Directiva 2004/25/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho de 21 de Abril de 2004, relativa às ofertas públicas de aquisição (Directiva das OPA), regula o direito de aquisição potestativa por parte da Oferente na sequência de uma oferta pública de aquisição geral, que coincide, como se demonstrará, com o aludido artigo 194.º, n.º 1 do CodVM, tendo o legislador português adoptado por estabelecer o direito em causa na situação permitida pela alínea b) do n.º 2 do aludido artigo.
Para além da aquisição potestativa, tanto a Directiva das OPA como o CódVM, consagra o direito de alienação potestativa nos seus artigos 16.º e 196.º respectivamente.
O direito de alienação potestativa trata de permitir que "os titulares dos valores mobiliários remanescentes" possam dispor da possibilidade de exigir que o Oferente que tenha alcançado, na sequência de uma OPA, uma percentagem de capital com direitos de voto de uma sociedade, proceda à aquisição dos seus valores mobiliários.
Trata-se este direito de alienação potestativa, de um direito simétrico da aquisição potestativa, como desde logo se interpreta facilmente do n.º 24 dos considerandos da Directiva das OPA que considera o seguinte:
"Os Estados-Membros deverão tomar as medidas necessárias para permitir que um oferente que tenha alcançado, na sequência de uma oferta pública de aquisição, uma certa percentagem do capital com direitos de voto de uma sociedade possa exigir que os titulares dos valores mobiliários remanescentes lhos vendam. De igual forma, sempre que um oferente tenha alcançado, na sequência de uma oferta pública de aquisição, uma certa percentagem do capital com direitos de voto de uma sociedade, os titulares dos valores mobiliários remanescentes deverão dispor da possibilidade de exigir que o oferente proceda à aquisição dos seus valores mobiliários. Estes mecanismos de aquisição e alienação potestativas só devem ser aplicáveis em condições específicas ligadas às ofertas públicas de aquisição. Noutras circunstâncias, os Estados-Membros podem continuar a aplicar as regras nacionais relativas aos mecanismos de aquisição e alienação potestativas" [Negrito e sublinhado nosso].
Resulta claro que a Directiva das OPA não dá interpretação diferente quanto à qualidade de titulares dos valores mobiliários remanescentes caso se trata do direito de aquisição potestativa ou de alienação potestativa. Pelo contrário, de acordo com a Directiva, são titulares dos valores mobiliários remanescentes os accionistas minoritários que detenham os valores mobiliários da Sociedade Visada quer na óptica do exercício da alienação potestativa, como na aquisição potestativa.
Mas se ainda assim dúvidas resultassem, um dos princípios gerais da Directiva das OPA é o da "igualdade de tratamento para todos os titulares de valores mobiliários da sociedade visada; nos casos em que uma pessoa adquira o controlo de uma sociedade, os restantes titulares de valores mobiliários terão de ser protegidos" [Negrito e sublinhado nosso].
No mesmo sentido, segue o legislador português, que não destinge os titulares das acções remanescentes para efeito de aquisição potestativa dos titulares das acções remanescentes para efeito de alienação potestativa, como resulta da leitura expressa dos artigos 194.º e 196.º do CodVM respectivamente.
Diz o aludido artigo 196.º, n.º 1, que "[c]ada um dos titulares das acções remanescentes, nos três meses subsequentes ao apuramento dos resultados da oferta pública de aquisição referida no n.º 1 do artigo 194.º, exercer o direito de alienação potestativa, devendo antes, para o efeito, dirigir por escrito ao sócio dominante convite para que, no prazo de oito dias, lhe faça proposta de aquisição das suas acções." e no n.º 2 do mesmo artigo que "[n]a falta da proposta a que se refere o número anterior ou se esta não for considerada satisfatória, qualquer titular de acções remanescentes pode tomar a decisão de alienação potestativa, mediante declaração perante a CMVM acompanhada de: a) Documento comprovativo de consignação em depósito ou de bloqueio das acções a alienar; b) Indicação da contrapartida calculada nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 194.º 3 - Verificados pela CMVM os requisitos da alienação, esta torna-se eficaz a partir da notificação por aquela autoridade ao sócio dominante."
Conforme bem refere o Senhor Juiz Desembargador Jubiliado, Dr. Joaquim Marques Cardoso, em missiva já endereçada à CMVM (e que se junta em anexo), um dos "princípios mais básicos da interpretação do direito que qualquer aluno do primeiro ano de um curso de direito apreende a partir do mais velho princípio da interpretação jurídica, que postula que «ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus», isto é, “onde a lei não distingue, não pode o intérprete distinguir”, impede desde logo a quixotesca ideia de destingir accionistas de primeira categoria para efeitos de desapropriação das suas acções, que serão os titulares das acções remanescentes no caso de uma aquisição potestativa, e os accionistas de segunda categoria, que seriam então os titulares de acções remanescentes em caso de alienação potestativa.
O toque na questão da distinção entre os titulares das acções remanescentes tratando-se de aquisição potestativa ou de alienação potestativa, justifica-se porque na bolsa de valores portuguesa e ao abrigo do CodVM há registo de várias aquisições potestativas que nunca enfrentaram nenhuma objecção à sua concretização com o argumento aberrante que a Oferente usa para não aceitar o exercício da alienação potestativa pelos titulares das acções remanescentes e que, pelos vistos, pelo menos alegadamente, a CMVM sindica.
Vamos então perceber o que esta em crise:
O "Jornal de Negócios" publicou a posição da CMVM relativamente ao direito de alienação potestativa das acções da Espírito Santo Saúde na sua edição de ontem, quinta-feira, 18 de Dezembro de 2014, num artigo com o título "Porque estão a disparar as acções da ES Saúde?" (que se junta em anexo).
A dita peça jornalística diz que, de acordo com a posição da CMVM, apenas os accionistas que fossem titulares das acções da ES Saúde a 14 de Outubro de 2014 e disso façam prova, podem fazer uso do direito de alienação potestativa. Adianta inclusivamente que quem comprou depois dessa data tal direito lhe é vedado.
Qualquer detentor das acções remanescentes da ES Saúde tem direito à alienação potestativa nos termos do artigo 196.º do CodVM e isso é isento de dúvida e sem espaço a discussão ou outras interpretações por tão claro e evidente que é o tratamento dado no CodVM e, paralelamente, no CSC (veja-se por exemplo o acórdão 2806/06-3 do TRE), assim como na Directiva das OPA e naquilo que tem sido a prática na bolsa de valores portuguesa e outras; como desde logo se argumentou no inicio desta missiva.
Por ser tão evidente que a posição alegadamente defendida pela CMVM é absoluta e visivelmente errada, custa acreditar que de facto seja essa a posição do regulador, no entanto e até ao momento, o mesmo não veio contrariar a posição assumida na dita publicação, apesar de ter sido convidado a faze-lo por esta Associação.
Acresce que vários accionistas, depois de cumprindo o regimental dever de fazer um convite ao Oferente e na falta da proposta (recusa) de aquisição das acções remanescentes de que eram titulares, declararam perante a CMVM a decisão de alienação potestativa, tendo cumprindo com todos os requisitos impostos pelo artigo 196.º, n.º 2 do CodVM, mas até ao momento nenhuma resposta foi obtida pelo regulador, apesar de ter sido insistentemente solicitada. Em pelo menos um dos casos, o pedido foi feito há bem mais de um mês, o que torna a ausência de resposta inaceitável.
A ausência de resposta aos accionistas que declaram perante a CMVM pretender fazer uso da alienação potestativa é mais grave quando a CMVM não esclarece a sua posição apresentada no referido artigo do Jornal de Negócios. Mais grave ainda quando a Associação solicitou no passado dia 17 de Dezembro p.p. que a CMVM esclarecesse o direito de alienação potestativa no caso da ESS.
Nesse pedido de esclarecimentos endereçado à CMVM em 17 de Dezembro p.p., a Associação defendeu ainda que: "cada acção representa um conjunto unitário de direitos e obrigações atuais e potenciais que se transmitem, sem perda de qualidade e eficácia, pela compra e venda da mesma, um desses direitos que a acção da ES goza actualmente é o direito de alienação potestativa prevista no artigo 196.º do CódVM".
Acrescentando que "são acções remanescentes da sociedade nos termos do CódVM, todas as acções da sociedade que sejam detidas pelos sócios minoritários (ou, se quisermos, não sejam detidas pelo sócio dominante) independentemente da data de aquisição das mesmas ser antes ou depois do apuramento dos resultados da OPA, nomeadamente para efeitos do direito previsto no artigo 196.º, mas também da regulação do direito simétrico, de aquisição potestativa, dado pelo artigo 194.º, que se a interpretação da Fildelidade vencesse, esvaziaria por completo o espírito e eficácia do mesmo".
Sustentando que "se fosse vontade do legislador limitar e delimitar esse direito de alienação potestativa apenas aos accionistas remanescentes que tivessem adquirido as acções antes do apuramento dos resultados da OPA, teria, facilmente, deixado clara essa vontade. Da mesma forma que deixaria claro qualquer distinção entre acções remanescentes para efeitos de aquisição potestativa e as acções remanescentes para efeitos de exercício do direito de alienação potestativa".
Concluindo que "os accionistas, titulares das ditas acções remanescentes, podem nos três meses subsequentes ao apuramento dos resultados da OPA , exercer o direito de alienação potestativa nos termos do artigo 196.º, n.º 1 do CódVM, «devendo antes para o efeito, dirigir por escrito ao sócio dominante convite para que, no prazo de oito dias, lhe faça proposta de aquisição das suas acções».
A Associação ainda explicou na dita missiva que a resposta da Fidelidade era grave, sustentando que até aceitava que "a Fidelidade recuse fazer qualquer proposta de aquisição das acções remanescentes quando convidada a isso" e argumenta que tão pouca a Fidelidade necessita "responder a esse convite (algo que a lei lhe permite)", argumentando que "é no mínimo censurável e lamentável, é que recusem tal convite com um fundamento assente numa interpretação clara e evidentemente errada (mesmo para o cidadão médio) que leva a que os destinatários da resposta da
Fidelidade façam um juízo errado, deturpado, influenciado e que poderá resultar na venda extemporânea das acções."
Em jeito de conclusão na dita missiva, a Associação reiterou que é seu entendimento que "[p]reenchidos os requisitos do direito ao exercício de alienação potestativa, o mesmo pode ser usado pelos accionistas remanescentes, tenham comprado antes ou depois da OPA. É impossível a qualquer pessoa afastar-se desta interpretação do CódVM, nomeadamente do artigo 196.º, muito menos quando se trata de uma sociedade tão qualificada como é notória e publicamente a Fidelidade, que embora tendo consciência da inexistência de fundamento legal válido opta, em má-fé instrumental, por agir e afirmar em sentido contrário (um género de “lide dolosa”)".
Apesar de tudo que foi exposto, nomeadamente das várias tentativas que a CMVM esclarecesse e fundamentasse a sua posição relativamente ao direito de alienação potestativa no caso da ESS, o regulador tem optado pelo silêncio, com excepção da alegada declaração concedida ao "Jornal de Negócios" onde, alegadamente, defende incompreensivelmente que afinal existem dois tipos de accionistas remanescentes num artigo onde o próprio legislador português e europeu não o vê.
Em face do exposto e porque a falta de esclarecimento urgente relativamente ao exercício de direito de alienação potestativa e de resposta aos accionistas que declararam perante a CMVM querer usar o mesmo, é grave, mais grave quando a CMVM defende num jornal económico de grande tiragem e elevado prestigio, lido por muitos dos eventuais titulares das acções remanescentes, que não existe o direito de alienação potestativa a quem adquiriu as acções depois da OPA é susceptível de colocar em causa o regular funcionamento do mercado ou dos interesses dos investidores (cfr. n.º 1 e n.º 2 ambos do artigo 379.º do CódVM), solicitamos a V. Exa. que apreciei a presente queixa agora apresenta nos termos e para os efeitos do artigo
3.º do Estatuto do Provedor de Justiça, nomeadamente que recomende à CMVM o seguinte:
1- A responder às informações solicitadas pelos titulares das acções remanescentes da ESS relativamente ao direito do exercício da direcção potestativa no prazo máximo de 10 dias a contar da apresentação das mesmas (cfr. artigo 61.º, n.º 3 do Código de Procedimento Administrativo);
2- Proceder à extracção de uma certidão comprovativa da notificação pela CMVM à Fidelidade no âmbito da declaração da decisão de alienação potestativa de qualquer titular de acções remanescentes que tenha sido requerida para os efeitos do artigo 196.º, n.º 4 do CódVM;
3- Justificar as razões de uma eventual decisão que venha a indeferir ou recusar qualquer um dos pedidos acima referidos nos termos do artigo 124.º, n.º 1 do Código de Procedimento Administrativo, na medida em que tal indeferimento/recusa afecta os direitos e interesses legalmente protegidos dos requerentes e vai de forma contrária à pretensão formulada e em modo diferente da prática habitualmente seguida na resolução de casos semelhantes;
4- A comunicar ao mercado de forma clara, completa e objectiva qual o entendimento da CMVM relativamente ao direito de alienação potestativa esclarecendo a posição alegadamente assumida no artigo do "Jornal de Negócios" de 18 de Dezembro de 2014.
Sublinhamos que a posição da CMVM relativamente ao tema em crise, nomeadamente a publicada no "Jornal de Negócios", é susceptível de alterar a forma como os titulares das acções remanescentes ES ajuízam a sua posição económico-jurídica na sociedade, podendo levar à venda as acções detidas, acreditando que as mesmas não gozam do referido direito.
Pelo que é importante e mesmo necessário saber qual a posição de V. Exa. relativamente ao direito de alienação potestativa em termos gerais, mas também olhando para o exemplo da ES e no caso dos accionistas que tenha comprado as acções remanescentes depois da OPA, para que fique claro para os pequenos accionistas, não qualificados e que são pequenos investidores e aforradores, logo mais vulneráveis em razão da sua falta de especialização e profissionalismo em investimento no mercado de valores mobiliários. Impõe-se conhecer a posição de V. Exa. mesmo que o Oferente venha a adquirir todas as acções remanescentes fazendo uso de uma aquisição potestativa, pois trata-se, acima de tudo, de uma questão de âmbito da protecção de direitos, liberdade e garantias que deve e tem de ficar esclarecida a bem do regular funcionamento do mercado e da confiança dos investidores (ao qual desde logo subjaz o interesse público imposto pelo artigo 101.º da Constituição da República Portuguesa).
Sem mais de momento, subscrevo-me com elevada consideração e estima.
Com os cordiais cumprimentos,
(Octávio Viana)"
Entretanto a ATM tem já pronta uma acção administrativa especial de impugnação onde pede que seja declarada a nulidade do acto administrativo da CMVM que indeferiu a alienação potestativa, ou, quando senão entenda, que sejam anuladas as deliberações impugnadas e, em qualquer dos casos, seja a demandada condenada a reconhecer o direito de alienação potestativa das acções que os accionistas detém na ESS.
Está ainda a ser preparada uma segunda acção comum de responsabilidade civil contra o Estado Português, CMVM, presidente da CMVM e os subscritores das cartas em que é recusado o direito de alienação potestativa
A ATM esta aguardar que alguns accionistas remanescentes da ESS cumpra as formalidades previstas no art.º 196.º do CodVM para avançar com as ditas acções.
Recorde-se no entanto que a Oferente pode ainda avançar com uma aquisição potestativa.
* cfr. http://web3.cmvm.pt/sdi2004/emitentes/docs/fsd30873.pdf, consultado em 19 de Dezembro de 2014.